Delfim Netto
Na Idade Média os governantes consideravam o trabalho escravo como algo normal, um direito divino.
O verdadeiro problema é compatibilizar dois valores existenciais com a necessidade de produzir uma subsistência material eficiente
O problema da desigualdade entre os homens sempre foi dramático. Desde que deixaram a África há pelo menos 150 mil anos, a evolução natural lhes deu as condições de se adaptarem às mais variadas realidades geográficas. Um rápido olhar nos últimos 10 mil anos sugere que as condições de sobrevivência material de grupos mais numerosos exige uma organização social que estimule, pelo incentivo, ou obrigue, pela força, alguma cooperação entre eles, o que deu nascimento às várias formas de “Estado”.
Até a metade do século XVIII da nossa era, todas essas organizações, desde a Antiguidade Greco-Latina às da Idade Média e às que se apoiaram na crença do direito “divino” dos governantes, tinham a “escravidão” como “o normal natural” e viam o trabalho físico, quando necessário à sobrevivência material, com desconfiança.
Só depois da Revolução Gloriosa de 1688, com a deposição de James II, na Inglaterra, e John Locke e seu liberalismo, é que a mais abjeta separação entre os homens – que não têm nenhuma razão “natural” para nascer desiguais em direitos e obrigações – começa a sofrer uma crítica corrosiva que lentamente vai se metamorfoseando numa busca da liberdade e igualdade para todos. É preciso insistir: não mais que 300 anos nos separam da aceitação como “natural” da mais repugnante das relações que se pode imaginar entre os homens: a escravidão.
O absurdo é visível. O homem sobreviveu materialmente pelo seu intercurso íntimo com a Natureza por meio da sua atividade “natural” – o seu trabalho inteligente – que a transforma e a conforma para o atendimento da crescente ampliação de suas necessidades.
Locke, na origem do liberalismo, desmontou a lógica de todos os absolutismos até então existentes e insistiu nas virtudes da governança representativa para assegurar o que, de fato, é “natural”: o respeito à liberdade e à igualdade original de cada homem e, portanto, de todos. Isso legitima a cada um apropriar-se apenas do que extraiu – com seu próprio trabalho – da Natureza, que é finita, e desde que não exceda as suas próprias necessidades.
Abriu-se, em meados do século XVII, uma narrativa que foi explorada por Adam Smith, Kant, Hegel e aterrissou espetacularmente em Marx. De certa forma, somos todos herdeiros desse movimento que deu início à busca de uma organização social concreta, onde todos tenham plena liberdade (ninguém é submetido à autoridade de outro), plena igualdade (o acidente do local do seu nascimento é irrelevante) e a produção da subsistência material de todos seja cada vez mais eficiente, para que lhes sobre cada vez mais tempo para gozá-la realizando a sua plena humanidade.
Essa busca, até agora sem sucesso, é a própria história dos movimentos sociais, do exercício da política e da construção de instituições como o sufrágio universal, que se refletem nas várias visões do mundo com as quais convivemos hoje.
O enigma da liberdade e da desigualdade dissolveu-se na antropologia, mas não se resolveu. Como não estamos no reino do pensamento abstrato, não há como demonstrar que tal organização existe e que, portanto, podemos encontrá-la.
E como estamos no reino da prática, não podemos provar que a Natureza tem uma lógica interna escondida da qual ela emergirá espontaneamente (crença que nasceu em Adam Smith). Não há truque, dialético ou metafísico, que possa resolvê-lo.
O verdadeiro problema é compatibilizar dois valores existenciais, liberdade e igualdade, com a necessidade de produzir uma subsistência material eficiente para que eles possam ser efetivamente gozados, condições que, na prática, são incompatíveis em termos absolutos (mais de um se faz em detrimento de menos dos outros).
É na aproximação assintótica dessa organização por meio do avanço do exercício da política, e do sufrágio universal (urna) combinado com o aperfeiçoamento dos mercados produzidos pelo avanço da microeconomia que talvez resida a solução. A teoria dos contratos e suas implicações ajudam a amenizar interesses antagônicos usando os próprios incentivos das partes e é, seguramente, um passo nessa direção. Como disse outro John (Keynes), em meados do século XX, o conhecimento da Economia não é a civilização. Talvez seja a sua possibilidade…
Fonte: Carta Capital

