Deformando a previdência

A atual pro­posta de Re­forma da Pre­vi­dência, que parte da su­cessão de golpes que têm sido dados no Brasil contra a po­pu­lação, é fun­da­men­tada em uma co­leção de de­sin­for­ma­ções. Uma delas, bas­tante re­pe­tida, é o su­posto dé­ficit pre­vi­den­ciário, cal­cu­lado a partir da di­fe­rença entre a con­tri­buição dos tra­ba­lha­dores e em­pre­ga­dores e as des­pesas do sis­tema.

Como já in­sis­ten­te­mente apon­tado, esse cál­culo está er­rado sob todos os pontos de vista. Pri­meiro, porque ne­nhuma lei, seja a Cons­ti­tuição, seja uma lei in­fe­rior, afirma que a pre­vi­dência deva ser cus­teada apenas por aquelas con­tri­bui­ções. A Cons­ti­tuição afirma que a se­gu­ri­dade so­cial, que in­clui “os di­reitos re­la­tivos à saúde, à pre­vi­dência e à as­sis­tência so­cial, deve ser fi­nan­ciada, se­gundo seu Art. 195, “por toda a so­ci­e­dade, de forma di­reta e in­di­reta, nos termos da lei, me­di­ante re­cursos pro­ve­ni­entes dos or­ça­mentos da União, dos es­tados, do Dis­trito Fe­deral e dos mu­ni­cí­pios, e das se­guintes con­tri­bui­ções so­ciais: […]”, ao que segue uma lista de fontes de re­cursos, entre as quais estão as con­tri­bui­ções de em­pre­gados e em­pre­ga­dores. Por­tanto, não tem ne­nhum sen­tido a con­ta­bi­li­dade que se tem usado para jus­ti­ficar um dé­ficit no sis­tema. Mesmo que se con­si­dere apenas as re­ceitas de con­tri­bui­ções so­ciais, não ha­veria um dé­ficit, mas, sim, um su­pe­rávit (*1).

Outro as­pecto pouco ana­li­sado diz res­peito ao fun­ci­o­na­mento do sis­tema pre­vi­den­ciário nos de­mais países. Talvez não haja um único país no mundo no qual o sis­tema pre­vi­den­ciário que fun­ciona pelo cri­tério de re­par­tição (ou so­li­da­ri­e­dade)(*2), como é o caso do INSS e da mai­oria das pre­vi­dên­cias do setor pú­blico, seja cus­teado apenas com con­tri­buição de em­pre­gados e em­pre­ga­dores. E, se houver, cer­ta­mente não são os EUA, país fin­gi­da­mente usado como pa­ra­digma pelas elites econô­micas bra­si­leiras.

Por­tanto, mesmo que se pro­cure, nos ou­tros países, dé­fi­cits pre­vi­den­ciá­rios nos moldes que se quer fazer a po­pu­lação bra­si­leira acre­ditar que existem, nada será en­con­trado. Há in­clu­sive muitos países nos quais a maior parte das des­pesas com apo­sen­ta­do­rias são cus­te­adas pela to­ta­li­dade da po­pu­lação, não por em­pre­gados e em­pre­ga­dores. Há exem­plos, ainda, nos quais os tra­ba­lha­dores se­quer con­tri­buem com o sis­tema de pre­vi­dência, como é o caso dos ser­vi­dores pú­blicos na Ale­manha.

Assim, não tem ne­nhum sen­tido as “ar­gu­men­ta­ções” usadas para de­fender a re­forma da pre­vi­dência nos moldes pro­postos pelo poder exe­cu­tivo. As reais ra­zões talvez sejam: (a) re­duzir os gastos pú­blicos, como exi­gido pela re­cente al­te­ração cons­ti­tu­ci­onal (pela PEC do fim do mundo) e, por­tanto, a ar­re­ca­dação de im­postos e con­tri­bui­ções so­ciais, coisa que in­te­ressa muito ao setor pri­vado e apa­rece ex­pli­ci­ta­mente no do­cu­mento base do golpe (*3); e (b) ao pi­orar as con­di­ções do sis­tema pú­blico de apo­sen­ta­doria e pensão, fa­vo­recer o sis­tema de pre­vi­dência por ca­pi­ta­li­zação, gran­de­mente con­tro­lado pelo setor ban­cário pri­vado.

O go­verno pre­fere os so­ne­ga­dores?

Além do tipo de aná­lise já feita, há al­guns ou­tros pontos que não têm sido des­ta­cados e que muito aju­da­riam a des­montar os dis­cursos usados para jus­ti­ficar a atual re­forma pre­vi­den­ciária. Pri­meiro, a so­ne­gação de im­postos e con­tri­bui­ções so­ciais. Es­ti­ma­tivas feitas pelo Sin­di­cato Na­ci­onal de Pro­cu­ra­dores da Fa­zenda Na­ci­onal (*4) in­dicam que cerca de 10% do PIB é sim­ples­mente so­ne­gado, al­guma coisa perto dos 600 bi­lhões de reais a cada ano a va­lores de 2016. Só a so­ne­gação das con­tri­bui­ções pre­vi­den­ciá­rias já é da ordem do ale­gado dé­ficit (aquele que não existe). Por­tanto, pa­rece que es­tamos sob um go­verno que pre­fere jogar a conta sobre o colo de tra­ba­lha­dores e em­pre­ga­dores – e pre­servar os so­ne­ga­dores.

Outro ponto pouco ana­li­sado é quanto à pro­porção entre pes­soas na idade ativa e pes­soas mais idosas no Brasil e nos de­mais países. Nesse que­sito, a si­tu­ação bra­si­leira é bas­tante fa­vo­rável. Atu­al­mente, o Brasil tem cerca de 6 pes­soas na faixa etária dos 20 aos 64 anos para cada pessoa com 65 anos ou mais. Para com­pa­ração, essa pro­porção é de pouco mais de 2 para um no Japão, e abaixo de 4 para um em quase todos os países eu­ro­peus (*5).

Sempre se pode ar­gu­mentar que no fu­turo não será assim. Mas no fu­turo não será assim também para os de­mais países: se­gundo a mesma re­fe­rência ci­tada, es­tima-se que o Brasil terá 2,6 pes­soas na faixa etária dos 20 aos 64 anos para cada pessoa acima dessa faixa em 2050; nesse mesmo ano, es­tima-se que o Japão terá 1,2 para um e os países eu­ro­peus, menos do que 2 para um. Por­tanto, nesse que­sito, o Brasil tem uma folga enorme.

De­mo­rará quase meio sé­culo para termos tão poucos tra­ba­lha­dores ativos para cada apo­sen­tado quanto al­guns países mais avan­çados têm hoje.

O sis­tema pre­vi­den­ciário bra­si­leiro, como o de qual­quer país, em qual­quer época e sob qual­quer con­dição econô­mica, tem pro­blemas. Ajustar o sis­tema de forma a re­solver os pro­blemas di­ag­nos­ti­cados é al­guma coisa que deve ser feita todo o tempo. No caso es­pe­cí­fico do Brasil, temos bas­tante tempo e con­di­ções muito fa­vo­rá­veis para moldar e manter um sis­tema pre­vi­den­ciário uni­versal, efi­ci­ente, justo e igua­li­tário. Mas o que se está fa­zendo é muito di­fe­rente disso: em lugar de exa­minar todos os as­pectos da questão pre­vi­den­ciária e apontar so­lu­ções para cada uma delas, sempre em ne­go­ci­ação trans­pa­rente com a so­ci­e­dade, está se ti­rando pro­veito da si­tu­ação, apro­vei­tando do des­co­nhe­ci­mento do pro­blema por grande parte da po­pu­lação e das di­fi­cul­dades de mo­bi­li­zação do país após os muitos trancos e golpes que está so­frendo.

Em re­sumo, o go­verno tem uma “so­lução” para o pro­blema pre­vi­den­ciário bra­si­leiro: piorá-lo para a grande massa da po­pu­lação e me­lhorá-lo para as elites econô­micas, que muito ga­nharão com as mu­danças. Para isso, ele, em con­junto com a grande mídia, que re­pre­senta os in­te­resses das elites, pre­cisa fa­bricar um pro­blema no qual sua “so­lução” se en­caixe.

Notas:

*1: Veja, por exemplo, http://www.anfip.org.br/noticia.php?id_noticia=21089, no sítio da As­so­ci­ação Na­ci­onal dos Au­di­tores Fis­cais da Re­ceita Fe­deral do Brasil.

*2: Sim­pli­fi­ca­da­mente, há dois sis­temas bá­sicos de pre­vi­dência: por so­li­da­ri­e­dade – do tipo be­ne­fício de­fi­nido, cha­mado também de sis­tema por re­par­tição – e por ca­pi­ta­li­zação, este com con­tri­buição de­fi­nida. No pri­meiro caso, não há re­cursos guar­dados; a cada mês, os go­vernos re­co­lhem re­cursos da po­pu­lação, por meio de con­tri­bui­ções, im­postos e ou­tras formas, e os usa para pagar apo­sen­tados, pen­si­o­nistas etc. No se­gundo caso, sis­tema por ca­pi­ta­li­zação, cada tra­ba­lhador tem uma conta em seu nome e o saldo dessa conta é o que será usado para cus­tear sua apo­sen­ta­doria. Este úl­timo sis­tema, no Brasil, é cha­mado também de com­ple­mentar.

Apenas no sis­tema so­li­dário, por re­par­tição, é pos­sível fazer jus­tiça, re­co­nhe­cendo as di­fe­rentes con­di­ções de cada pessoa e cada tipo de tra­balho, como idade e tempo de con­tri­buição di­fe­rentes para ho­mens e mu­lheres, apo­sen­ta­do­rias para tra­ba­lha­dores ru­rais, apo­sen­ta­do­rias por in­va­lidez, tempos e idades di­fe­rentes para pro­fis­sões de risco ou que apre­sentem pe­ri­cu­lo­si­dade etc. No sis­tema por ca­pi­ta­li­zação, nada disso existe: cada um compra a apo­sen­ta­doria que con­segue, in­de­pen­den­te­mente de suas ca­rac­te­rís­ticas ou das ca­rac­te­rís­ticas de sua pro­fissão.

*3: O do­cu­mento “Uma ponte para o fu­turo”, do PMDB, de no­vembro de 2015, pode ser en­con­trado neste en­de­reço

http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf 

*4: Ver http://www.sinprofaz.org.br/noticias/presidente-do-sinprofaz-revela-numeros-da-sonegacao-em-audiencia-na-camara 

*5: Ver http://www.sinprofaz.org.br/noticias/presidente-do-sinprofaz-revela-numeros-da-sonegacao-em-audiencia-na-camara/

Ota­viano He­lene, pro­fessor no Ins­ti­tuto de Fí­sica da USP, ex-pre­si­dente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um di­ag­nós­tico da Edu­cação Bra­si­leira e de seu fi­nan­ci­a­mento”.

Fonte: Correio Cidadania

 

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