Os ratos que saem dos porões da civilização

As classes do­mi­nantes bra­si­leiras e im­pe­ri­a­listas estão em festa. Man­daram muito bem no es­pe­tá­culo da de­mo­cracia e da eleição en­cer­rada na data de ontem.

Mais do que eleger o can­di­dato com a sua cara, seu nível mental e cul­tural, elas con­se­guiram ou­tras im­por­tantes vi­tó­rias. Efê­meras, é ver­dade. Mas pouco im­porta. Na po­lí­tica, muito mais que na eco­nomia, é o ime­diato que conta.

E exa­ta­mente neste ime­diato do pro­cesso que os pa­ra­sitas con­se­guiram a grande vi­tória po­lí­tica de trans­formar uma eleição to­tal­mente ir­re­le­vante para a so­lução dos pro­blemas na­ci­o­nais em um alu­ci­nante es­pe­tá­culo de ali­e­nação da so­ci­e­dade civil. Com cenas cho­cantes para os es­pí­ritos menos pre­pa­rados para a re­a­li­dade de­mo­crá­tica.

A bur­guesia impôs sua agenda po­lí­tica a todos os par­tidos de­mo­crá­ticos e de­mais or­ga­ni­za­ções bu­ro­crá­ticas da so­ci­e­dade civil. In­clu­sive seus no­tó­rios co­la­bo­ra­ci­o­nistas da es­querda, que sempre le­gi­timam bo­vi­na­mente a agenda bur­guesa.

Por mais de seis meses, desde a grande greve dos ca­mi­nho­neiros, em maio, a luta de classes ficou aba­fada por imunda e inócua dis­puta elei­toral.

A cara do Brasil branco e bur­guês

Mas, no final da trama, que pro­metia à fa­mília bur­guesa pelo menos a es­pe­rança de re­cu­pe­ração de sua di­la­ce­rada go­ver­na­bi­li­dade, a mon­tanha pariu um rato.

O es­pe­tá­culo da eleição do novo pre­si­dente da Re­pú­blica foi na ver­dade uma ar­ma­dilha para con­trolar os mo­vi­mentos da classe tra­ba­lha­dora, mas que ainda dará in­con­tor­ná­veis con­tra­ri­e­dades para as pró­prias classes que a mon­taram.

O custo será alto para a bur­guesia. Seus pró­prios ideó­logos me­lhor pre­pa­rados con­fessam que o fol­cló­rico can­di­dato ven­cedor da eleição para pre­si­dente da Re­pú­blica foi uma sur­presa al­ta­mente in­de­se­jável.

Um salto no es­curo. Esse foi o tí­tulo do edi­to­rial, no dia se­guinte à eleição, de O Es­tado de S. Paulo, o mais tra­di­ci­onal e mais pro­gra­má­tico jornal bra­si­leiro das classes do­mi­nantes im­pe­ri­a­listas e na­ci­o­nais.

Veja uma ilus­tra­tiva pas­sagem de má cons­ci­ência bur­guesa frente ao nas­ci­mento desse mais novo filho bas­tardo da de­mo­cracia:

“Se há um ano al­guém dis­sesse que Jair Bol­so­naro tinha al­guma chance de se eleger pre­si­dente da Re­pú­blica, pro­va­vel­mente seria ri­di­cu­la­ri­zado. Até pouco tempo atrás, o ex-ca­pitão do Exér­cito era apenas um can­di­dato fol­cló­rico, desses que de tempos em tempos apa­recem para causar cons­tran­gi­mentos nas cam­pa­nhas – papel cum­prido mais re­cen­te­mente pelo pa­lhaço Ti­ri­rica, aquele que se elegeu di­zendo que ‘pior do que está não fica’.

Pois a ‘ti­ri­ri­ca­ri­zação’ da po­lí­tica atingiu seu ápice, com a es­colha de um pre­si­dente da Re­pú­blica que muitos de seus pró­prios elei­tores con­si­deram com­ple­ta­mente des­pre­pa­rado para che­fiar o go­verno e o Es­tado. O eleitor es­co­lheu Bol­so­naro sem ter a mais re­mota ideia do que ele fará quando es­tiver na ca­deira pre­si­den­cial. Não é um bom au­gúrio, jus­ta­mente no mo­mento em que o País mais pre­cisa de cla­reza, com­pe­tência e li­de­rança” (edi­to­rial de O Es­tado de São Paulo, 29/10/2018)”

De­fron­tamo-nos aqui com um pro­blema de ponto de vista de classe. Em­bora os ideó­logos do jornal pro­curem es­conder em seu edi­to­rial, a ver­dade é que o re­bento Jair­zinho nasceu com a cara da bur­guesia bra­si­leira, seu mesmo nível mental e cul­tural.

De Ma­cu­naíma a Ti­ri­rica, a alma bur­guesa bra­si­leira sempre será re­pre­sen­tada com muita dis­tinção. Prin­ci­pal­mente a sua in­con­tro­lável ín­dole au­to­ri­tária en­tra­nhada ge­ne­ti­ca­mente em todas as elites cu­ca­ra­chas (e brancas, por su­pu­esto) da Amé­rica La­tina.

En­tre­tanto, o pro­blema dos poucos ana­listas po­lí­ticos sé­rios da bur­guesia, como os que es­cre­veram o edi­to­rial do Es­tadão acima, é saber, neste mo­mento, as pos­si­bi­li­dades de so­bre­vi­vência do go­verno desse novo Ti­ri­rica com cara de mi­li­ciano fas­cis­tóide.

Me­lhor di­zendo, o es­croto grupo de mi­li­ci­anos eleito de­mo­cra­ti­ca­mente e que ocu­pará o Pa­lácio do Pla­nalto po­derá se manter na nova re­si­dência por muito tempo? Esse é o pro­blema cen­tral da si­tu­ação po­lí­tica.

Se o pro­blema fosse apenas po­lí­tico, ide­o­ló­gico etc., a res­posta seria sim. Ima­gi­nando – como fazem os “ana­listas po­lí­ticos” e seus fan­ta­si­osos ce­ná­rios para o novo go­verno – que o pro­cesso po­lí­tico atual fosse mera su­cessão de go­vernos, como ocorria desde 1988, esse “novo go­verno” po­deria curtir o pa­lácio real pelo menos até o fim do seu man­dato, sem grandes rup­turas ins­ti­tu­ci­o­nais.

Acon­tece que a re­a­li­zação dessa pos­si­bi­li­dade ab­so­lu­ta­mente ir­real de nor­ma­li­dade po­lí­tica de­pende de duas coisas so­li­da­mente ma­te­riais. A pri­meira é o que fará (ou não fará) esse in­di­víduo “com­ple­ta­mente des­pre­pa­rado para che­fiar o go­verno e o Es­tado”, para usar a mesma ava­li­ação do Es­tadão, para tirar a eco­nomia do bu­raco.

Bomba-re­lógio

O fato de­ter­mi­nante para quem vê cri­te­ri­o­sa­mente a eco­nomia bra­si­leira é que o mi­nistro da Eco­nomia do novo go­verno apli­cará exa­ta­mente a mesma po­lí­tica econô­mica de aus­te­ri­dade dos go­vernos Dilma/Levy e Temer/Mei­relles. Uma mera e trá­gica con­ti­nui­dade.

Sem tirar nem por. Apenas, talvez, com al­gumas pi­tadas a mais de re­quintes de cru­el­dade. No resto, apenas o co­nhe­cido saco de mal­dades já co­nhe­cido de todo mundo.

Re­forma da Pre­vi­dência; re­forma tri­bu­tária para au­mentar a ta­xação sobre os as­sa­la­ri­ados po­bres e para di­mi­nuir sobre a alta classe média e grandes for­tunas; ma­nu­tenção do teto de gastos cor­rentes da União; mais cortes de gastos so­ciais e de in­fra­es­tru­tura; mais ar­rocho sa­la­rial no setor pú­blico e pri­vado; mais pri­va­ti­za­ções (na ver­dade do­a­ções) do que ainda restam de em­presas es­ta­tais como Pe­tro­bras, Caixa, Banco do Brasil etc. Esse saco de mal­dades não tem fim.

En­tre­tanto, até os pró­prios ge­ne­rais que já tu­telam o novo go­verno – co­me­çando pelo seu vice-pre­si­dente eleito pelo voto de­mo­crá­tico e po­pular – já afir­maram que sua go­ver­na­bi­li­dade de­pen­derá dra­ma­ti­ca­mente da so­lução do pro­blema econô­mico.

Con­cre­ta­mente fa­lando: a eco­nomia pre­cisa voltar a crescer bas­tante e o de­sem­prego di­mi­nuir muito mais. Senão a in­go­ver­na­bi­li­dade po­lí­tica au­men­tará ce­le­re­mente. E a im­po­pu­la­ri­dade do novo pre­si­dente cairá em menos de doze meses para os mesmos ní­veis do sim­pá­tico, ele­gante e ad­mi­rado se­nhor Mi­chel Temer.

É exa­ta­mente por isso que os meios de co­mu­ni­cação (im­prensa, co­men­ta­ristas econô­micos, ins­ti­tui­ções econô­micas im­pe­ri­a­listas, sin­di­catos pa­tro­nais, grandes con­sul­to­rias, bancos, fi­nan­ceiras etc.) já au­men­taram o vo­lume de suas de­sa­fi­nadas bandas, da sua ba­ru­lhenta tor­cida or­ga­ni­zada pela re­cu­pe­ração da eco­nomia.

A guerra ao povo con­tinua

A partir dos re­sul­tados da eleição re­co­meça a ba­talha mi­diá­tica para pro­pa­gan­dear que “a eco­nomia já apre­senta si­nais de re­cu­pe­ração”, que “a con­fi­ança dos in­ves­ti­dores ex­ternos está vol­tando” e toda aquela la­dainha de bo­ba­gens que todo mundo já co­nhece de ou­tros car­na­vais.

Tudo exa­ta­mente igual ao san­grento car­naval que fi­zeram no atual go­verno dos fa­las­trões Temer e Mei­relles. De novo te­remos que travar a mesma ba­talha teó­rica e prá­tica para de­mons­trar que não con­se­guirão tirar a eco­nomia do bu­raco que essa te­ne­brosa dupla meteu.

Nossa Crí­tica da Eco­nomia, com o claro, pre­ciso e in­va­ri­ante ponto de vista da classe ope­rária, já venceu essas ba­ta­lhas teó­ricas nos dois úl­timos go­vernos. Ven­cerá também agora.

Com­pro­va­remos mais uma vez que os eco­no­mistas dos pa­ra­sitas do sis­tema são in­ca­pazes teó­rica e pra­ti­ca­mente de re­cu­perar a eco­nomia bra­si­leira. Que eles vão con­ti­nuar que­brando a cara ao aplicar as mesmas di­re­tivas econô­micas dos dois úl­timos go­vernos. E que a eco­nomia con­ti­nuará es­tag­nada, aguar­dando ou­tros acon­te­ci­mentos ex­ternos para então de­sabar pro­fun­da­mente.

Não há ne­nhuma pos­si­bi­li­dade de que qual­quer go­verno ga­ranta a go­ver­na­bi­li­dade do Es­tado bra­si­leiro apli­cando essa ine­vi­tável e pa­ra­si­tária po­lí­tica econô­mica. Uma po­lí­tica de muita sim­pli­ci­dade: ar­rocho sobre a po­pu­lação tra­ba­lha­dora e de “aus­te­ri­dade fiscal” para salvar o pa­ga­mento dos juros da dí­vida pú­blica aos trinta mi­lhões de pa­ra­sitas (menos de 15% da po­pu­lação do país) que com­põem as fa­mí­lias das classes do­mi­nantes bra­si­leiras.

Con­texto ex­terno

Como se essa bar­reira ma­te­rial à in­go­ver­na­bi­li­dade ainda fosse in­su­fi­ci­ente, a se­gunda coisa também so­li­da­mente ma­te­rial que im­pe­dirá a hos­pe­dagem do grupo de mi­li­ci­anos no Pa­lácio do Pla­nalto por muito tempo é que a ex­plosão dos mer­cados ex­ternos está mais ma­dura do que nunca.

É aquele acon­te­ci­mento ex­terno que men­ci­o­namos acima. É por isso que, não por acaso, por­tanto, ana­li­samos con­ti­nu­a­mente em nossos bo­le­tins essa si­tu­ação do mer­cado mun­dial. Nos dois úl­timos, por exemplo.

A apro­xi­mação deste ro­busto choque global do ca­pital, que deve ser o mais de­vas­tador dos úl­timos se­tenta anos, fe­chará a tampa do caixão do podre Es­tado bra­si­leiro.

E in­ter­rom­perá cru­ci­al­mente o es­porte fa­vo­rito da bur­guesia bra­si­leira de con­ti­nuar ma­tando a classe ope­rária que é em­pre­gada nas fá­bricas, minas e plan­ta­ções, que é de­sem­pre­gada nas noites e noites do trá­gico vazio da ci­vi­li­zação, que passa fome com seus fi­lhos, que morrem de “balas per­didas” dos guar­diões da ordem e do pro­gresso.

A im­po­tência das classes do­mi­nantes bra­si­leiras para es­capar à vin­gança da sua pró­pria eco­nomia – exa­ta­mente neste mo­mento em que a “ti­ri­ri­ca­ri­zação” da po­lí­tica bra­si­leira atingiu seu ápice, para re­petir o con­ceito per­fei­ta­mente ela­bo­rado no edi­to­rial do Es­tadão – abrirá reais e pro­mis­soras pos­si­bi­li­dades de que os ver­da­deiros re­vo­lu­ci­o­ná­rios possam aban­donar para sempre as ilu­sões de­mo­crá­ticas bur­guesas, e cerrar fi­leira em pe­lo­tões de pro­le­tá­rios unidos no ca­minho da re­vo­lução.

Re­su­mindo o que foi es­crito, trans­cre­vemos abaixo men­sagem re­ce­bida de uma jovem re­vo­lu­ci­o­nária, que, evi­den­te­mente, nos ins­pirou bas­tante para es­crever este bo­letim: “Os ratos hoje estão em festa por terem ar­mado a ra­to­eira… Fico só aguar­dando esses risos na hora em que eles caírem na pró­pria ar­ma­dilha”.

José An­tonio Mar­tins é eco­no­mista e editor do site Crí­tica da Eco­nomia.

Fonte : Critica da Economia

 

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