“Privatizar a Caixa é uma tragédia para a economia e a população; na pandemia uma tragédia maior ainda”

No dia 7 de agosto, Bol­so­naro as­sinou a MP 995 que per­mite a venda de sub­si­diá­rias da Caixa Econô­mica Fe­deral (CEF). Ques­ti­o­nada pelo TCU, a MP já re­cebeu mais de 400 emendas e tem como ob­je­tivo o fa­ti­a­mento do banco pú­blico que mais oferta cré­dito à po­pu­lação. Em tese tal pro­jeto de­veria passar pelo crivo le­gis­la­tivo, mas, em mais uma in­ter­pre­tação das leis a favor do in­te­resse ca­pi­ta­lista, o STF li­berou essa mal dis­far­çada mo­da­li­dade de pri­va­ti­zação. É sobre isso que pu­bli­camos en­tre­vista com Sergio Ta­ke­moto, pre­si­dente da Fe­de­ração Na­ci­onal das As­so­ci­a­ções do Pes­soal da CEF.

“Vemos que é um com­por­ta­mento re­cor­rente do atual go­verno não querer di­a­logar com o mo­vi­mento sin­dical, com os mo­vi­mentos so­ciais e a so­ci­e­dade. Ele quer agradar aos grandes in­ves­ti­dores pri­vados. Para isso, ele lança mão de MPs e deixa clara a in­tenção em atuar à re­velia dos ou­tros po­deres para pre­va­lecer sua agenda pri­va­tista”.

Na en­tre­vista, Ta­ke­moto des­taca o papel cen­tral do banco como re­a­li­zador de po­lí­ticas econô­micas que per­mitam o mí­nimo de jus­tiça e in­clusão so­cial, a exemplo do que acon­tece no âm­bito da mo­radia, além de ga­rantir ní­veis mí­nimos de con­trole nos preços e taxas do sis­tema ban­cário.

“Manter a Caixa pú­blica é fun­da­mental para o Brasil. Em mo­mento de crise, como o que vi­vemos agora, mais uma vez o go­verno re­corre à Caixa para manter a es­ta­bi­li­dade econô­mica, ofer­tando cré­ditos às em­presas e dando su­porte à po­pu­lação. É com os bancos pú­blicos como a Caixa que o go­verno con­segue as­se­gurar um nível de con­cor­rência ade­quado de oferta e preço no mer­cado bra­si­leiros”.

Em meio a uma pan­demia e um vi­sível pro­cesso de em­po­bre­ci­mento e de­sem­prego, ab­dicar de um banco do ta­manho da Caixa seria, se­gundo Sergio Ta­ke­moto, ainda mais ca­tas­tró­fico do que em con­di­ções nor­mais.

“Pri­va­tizar a Caixa ou abrir o ca­pital das suas sub­si­diá­rias, seja como for que o go­verno queira chamar, é perder in­ves­ti­mentos im­por­tantes do Brasil como esses. O sis­tema fi­nan­ceiro pri­vado, o mer­cado, não quer in­vestir no so­cial e esse é o papel de­sem­pe­nhado pela Caixa e seus tra­ba­lha­dores com com­pe­tência por 159 anos”.

A en­tre­vista com­pleta com Sergio Ta­ke­moto pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em que con­siste a MP 995/2020 e por que ela sig­ni­fica uma pri­va­ti­zação?

Sergio Ta­ke­moto: A MP 995/2020 per­mite uma re­or­ga­ni­zação so­ci­e­tária e o de­sin­ves­ti­mento da Caixa e das sub­si­diá­rias, que são em­presas for­madas pela Caixa, como a Caixa Se­gu­ri­dade e a Caixa Car­tões. Para que a di­reção do banco possa abrir o ca­pital da em­presa, ou seja, di­vidir as ações, é ne­ces­sária uma au­to­ri­zação le­gis­la­tiva. A MP atro­pela o Poder Le­gis­la­tivo e ex­clui a ne­ces­si­dade de au­to­ri­zação dos se­na­dores e de­pu­tados.

O texto da MP, no ar­tigo 2º, au­to­riza que as sub­si­diá­rias cons­ti­tuam ou­tras sub­si­diá­rias, como joint ven­tures, com fi­na­li­dade de de­sin­ves­ti­mento da Caixa e das sub­si­diá­rias. Per­mite também que o banco in­cor­pore ações de ou­tras so­ci­e­dades em­pre­sa­riais ou par­ti­ci­pação mi­no­ri­tária em em­presas pri­vadas. Esse ar­tigo frauda a Cons­ti­tuição Fe­deral no ar­tigo 37, in­ciso 20, que trata jus­ta­mente da au­to­ri­zação le­gis­la­tiva.

Apesar da di­reção da Caixa chamar de aber­tura de ca­pital, co­nhe­cido no mer­cado como IPO, para nós, que de­fen­demos a Caixa 100% pú­blica, é a pri­va­ti­zação do banco. O go­verno está en­tre­gando partes im­por­tantes da em­presa ao ca­pital pri­vado, pro­mo­vendo o en­fra­que­ci­mento do papel so­cial da Caixa. Ven­dendo parte das ações das sub­si­diá­rias, a Caixa pode perder o con­trole para o ca­pital pri­vado e o lucro que iria para in­ves­ti­mento no país passa para os co­fres desses in­ves­ti­dores e não da po­pu­lação.

Outro ponto im­por­tante é que a MP já está va­lendo desde a data da edição. Ou seja, não pre­cisa de au­to­ri­zação le­gis­la­tiva para co­meçar a valer. Seus efeitos podem ser de­vas­ta­dores.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais áreas do banco se­riam pri­va­ti­zadas e por meio de quais ex­pe­di­entes?

Sergio Ta­ke­moto: O pre­si­dente da Caixa, Pedro Gui­ma­rães, disse que a aber­tura da Caixa Se­gu­ri­dade, quarto maior grupo se­gu­rador do país, ocor­reria agora em ou­tubro. O IPO dessa sub­si­diária seria em março, mas foi sus­penso de­vido à pan­demia do co­ro­na­vírus. Na lista também estão Caixa Car­tões, Lo­té­ricas e a Caixa Asset Ma­na­ge­ment, o braço de gestão de re­cursos do banco.

Com a MP, o go­verno também quer trans­formar em sub­si­diária o banco di­gital, que foi a pla­ta­forma usada para o pa­ga­mento do au­xílio emer­gen­cial. Tão logo isso for pos­sível, a di­reção do banco vai abrir o ca­pital dessa nova sub­si­diária, criada pelos em­pre­gados da Caixa.

A Me­dida Pro­vi­sória é o pri­meiro passo para a ali­e­nação de ativos da Caixa e para di­mi­nuir a atu­ação do banco em se­tores como o mer­cado de se­guros e ou­tros não-es­tra­té­gicos. É com esse dis­po­si­tivo que o go­verno vai en­fra­quecer o papel so­cial da Caixa.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa das ale­ga­ções em favor da pri­va­ti­zação?

Sergio Ta­ke­moto: Nós da Fenae e do mo­vi­mento sin­dical de­fen­demos a Caixa 100% pú­blica. O go­verno quer en­tregar uma em­presa para o mer­cado pri­vado que é es­sen­cial para o de­sen­vol­vi­mento do país.

O go­verno mancha a imagem de es­ta­tais, da Caixa, para jus­ti­ficar pri­va­ti­za­ções. O in­te­resse é pri­va­tizar para atender ao mer­cado pri­vado.

Quem ganha com um ser­viço de saúde ruim? São os grandes em­pre­sá­rios de plano de saúde. Quem ganha com a edu­cação ruim? Os grandes grupos edu­ca­ci­o­nais. Quem vai ga­nhar com a pri­va­ti­zação da Caixa? Os bancos pri­vados. O go­verno não tem in­te­resse em atender a po­pu­lação mais pobre, que são os prin­ci­pais cli­entes da Caixa.

Nós somos contra a pri­va­ti­zação e por isso que a Fenae e mais de 270 en­ti­dades as­si­naram um ma­ni­festo que mostra a nossa total dis­cor­dância com a MP 995/2020. Os par­tidos de opo­sição ao go­verno Bol­so­naro – PT, PSOL, PC do B, PDT, Rede e PSB – também to­maram me­didas contra a MP. Eles en­traram no Su­premo Tri­bunal Fe­deral com Ação Di­reta de In­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dade pe­dindo a sus­pensão dos efeitos da Me­dida Pro­vi­sória e nós, da Fenae, também que­remos en­trar com uma ADIN no Su­premo.

Cor­reio da Ci­da­dania: Existe al­guma con­sis­tência no ar­gu­mento pri­va­tista ou é mera ide­o­logia se apro­vei­tando de um con­texto po­lí­tico em que tudo pa­rece se es­fa­celar?

Sergio Ta­ke­moto: Ne­nhuma! Como eu disse, a ideia do go­verno é deixar todo o pa­trimônio da po­pu­lação nas mãos dos em­pre­sá­rios e o Pedro Gui­ma­rães é um deles. Não tem sen­tido pri­va­tizar a Caixa. O banco é o res­pon­sável pelo pa­ga­mento do au­xílio emer­gen­cial para mais de 66 mi­lhões de pes­soas, que o sis­tema fi­nan­ceiro virou as costas e não as­sumiu o pa­ga­mento; res­pon­sável pela gestão do Fundo de Ga­rantia do Tempo de Ser­viço (FGTS), au­xilia o tra­ba­lhador em um mo­mento di­fícil que é a si­tu­ação de de­sem­prego, como também per­mite ações para toda a po­pu­lação bra­si­leira, como o de­sen­vol­vi­mento nas áreas de ha­bi­tação po­pular, sa­ne­a­mento bá­sico, in­fra­es­tru­tura e mo­bi­li­dade ur­bana.

Di­versos ou­tros pro­gramas so­ciais passam pela Caixa, como o Bolsa Fa­mília, o Fundo de Fi­nan­ci­a­mento Es­tu­dantil (FIES) e o Minha Casa Minha Vida. Não po­demos deixar que tudo isso seja re­ti­rado da po­pu­lação bra­si­leira.

Cor­reio da Ci­da­dania: Para o leitor tomar co­nhe­ci­mento, quais são as prin­ci­pais ati­vi­dades do banco e sua di­visão ad­mi­nis­tra­tiva?

Sergio Ta­ke­moto: A Caixa foi criada em 1861 para ser a pou­pança dos bra­si­leiros. Para além das ati­vi­dades fi­nan­ceiras nor­mais de banco, ela tem em seu DNA o papel so­cial para de­sen­vol­vi­mento do país. Por isso, di­zemos que a Caixa pre­cisa ser mais que o lucro do mer­cado, ela exerce um papel fun­da­mental de jus­tiça so­cial fa­zendo in­ves­ti­mentos em se­tores como ha­bi­tação, sa­ne­a­mento bá­sico, in­fra­es­tru­tura e pres­tação de ser­viços e tem uma atenção es­pe­cial para as fa­mí­lias de baixa renda.

Além do pre­si­dente, a Caixa tem os vice-pre­si­dentes de Go­verno, de Fundos de In­ves­ti­mento, de Tec­no­logia e Di­gital, de Agente Ope­rador, de Pes­soas, de Ne­gó­cios de Va­rejo, de Lo­gís­tica e Ope­ra­ções, de Ha­bi­tação, de Rede de Va­rejo, de Ata­cado, de Riscos e de Fi­nanças e Con­tro­la­doria.

São mais de 53 mil pontos de aten­di­mento, 4,1 mil agên­cias, 13 mil uni­dades lo­té­ricas e 8 uni­dades-ca­mi­nhão, 2 agên­cias barcos e mais de 84 mil em­pre­gados Caixa. A Caixa possui 128,1 mi­lhões de cli­entes e é res­pon­sável por cerca de 38% da pou­pança na­ci­onal e 69% do cré­dito ha­bi­ta­ci­onal. É esse con­junto de ativos que leva a Caixa em lu­gares onde os bancos pri­vados não querem estar.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como atrelar mais esse avanço da agenda pri­va­tista ao mé­todo po­lí­tico de levar adi­ante um as­sunto re­la­tivo a um grande banco pú­blico por fora dos ca­nais de­mo­crá­ticos?

Sergio Ta­ke­moto: Vemos que é um com­por­ta­mento re­cor­rente do atual go­verno não querer di­a­logar com o mo­vi­mento sin­dical, com os mo­vi­mentos so­ciais e a so­ci­e­dade. Ele quer agradar aos grandes in­ves­ti­dores pri­vados. Para isso, ele lança mão de MPs e deixa clara a in­tenção em atuar à re­velia dos ou­tros po­deres para pre­va­lecer sua agenda pri­va­tista.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais se­riam as con­sequên­cias da pri­va­ti­zação da Caixa en­quanto a pan­demia do co­ro­na­vírus não pa­rece pró­xima do final?

Sergio Ta­ke­moto: Pri­va­tizar a Caixa é uma tra­gédia para a eco­nomia e para a po­pu­lação em qual­quer mo­mento, e fazer isso em um mo­mento de pan­demia, de crise econô­mica mun­dial, onde o mer­cado está ins­tável, faria a Caixa ser ven­dida a um preço de ba­nana, será uma tra­gédia maior ainda.

A Fenae está apoi­ando o pro­jeto de lei 2.715/2020, que sus­pende as pri­va­ti­za­ções até 2022, im­pe­dindo o avanço dos planos do go­verno du­rante o pe­ríodo da pan­demia. O PL é de au­toria do de­pu­tado Enio Verri (PT/PR) e das de­pu­tadas Fer­nanda Mel­chi­onna (Psol/RS), Joênia Wa­pi­chana (Rede/RR) e Per­pétua Al­meida (PCdoB/AC). O PL foi apre­sen­tado na Câ­mara e ainda aguarda apre­ci­ação da Casa.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais os mo­tivos mais im­por­tantes de mantê-la pú­blica?

Sergio Ta­ke­moto: Manter a Caixa pú­blica é fun­da­mental para o Brasil. Em mo­mento de crise, como o que vi­vemos agora, mais uma vez o go­verno re­corre à Caixa para manter a es­ta­bi­li­dade econô­mica, ofer­tando cré­ditos às em­presas e dando su­porte à po­pu­lação. É com os bancos pú­blicos como a Caixa que o go­verno con­segue as­se­gurar um nível de con­cor­rência ade­quado de oferta e preço no mer­cado bra­si­leiros.

A Caixa é o banco da ha­bi­tação, com fi­nan­ci­a­mentos com juros mais baixos a po­pu­lação re­a­liza o sonho da casa pró­pria. Com o Minha Casa Minha Vida, para além do fi­nan­ci­a­mento, a Caixa também gera em­prego e renda no setor. No 2º tri­mestre de 2020, foram con­tra­tados R$ 28 bi­lhões pela Caixa, o equi­va­lente a 153,4 mil novas uni­dades ha­bi­ta­ci­o­nais. O atual go­verno deixou de lado as con­tra­ta­ções do Minha Casa Minha Vida para as fa­mí­lias do faixa 1, com renda de até R$ 1.800. Mas também é por meio da Caixa que essas fa­mí­lias mais po­bres ti­veram suas mo­ra­dias.

Parte da ar­re­ca­dação das lo­te­rias, cerca de 30%, é re­di­re­ci­o­nado para po­lí­ticas so­ciais. As lo­te­rias da Caixa fi­nan­ciam os es­tudos de mi­lhares de bra­si­leiros por meio do FIES e fi­nancia o es­porte para di­versos atletas, olím­picos e pa­ra­lím­picos, fu­tebol, jogos es­co­lares e uni­ver­si­tá­rios. Essa ar­re­ca­dação também per­mite in­ves­ti­mentos na área de saúde, pelo Fundo Na­ci­onal da Saúde, se­gu­rança, cul­tura, entre ou­tros.

Pri­va­tizar a Caixa ou abrir o ca­pital das suas sub­si­diá­rias, seja como for que o go­verno queira chamar, é perder in­ves­ti­mentos im­por­tantes do Brasil como esses. O sis­tema fi­nan­ceiro pri­vado, o mer­cado, não quer in­vestir no so­cial e esse é o papel de­sem­pe­nhado pela Caixa e seus tra­ba­lha­dores com com­pe­tência por 159 anos.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

Fonte: Correio da Cidadania

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *