Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga

Em países emergentes como Brasil, Índia e Filipinas, trabalhadores de plataformas como Uber e vendedores de Instagram encontraram nas redes sociais um meio de sobrevivência, mas também um ambiente fértil da extrema direita, alinhada à ascensão dos governos atuais desses países.

Para a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, a relação entre a inserção no mercado de trabalho desses grupos sociais e o posicionamento político de direita não são coincidência.

É possível que a própria estrutura das plataformas — seu formato altamente individualizado e focado no mérito — esteja exacerbando tendências políticas hiperliberais, argumenta.

Essa é a hipótese central de um trabalho de pesquisa que será coordenado por Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath (Reino Unido).

A antropóloga brasileira, Rosana Pinheiro Machado, laureada com financiamento para uma pesquisa inédita sobre a relação entre trabalhadores, redes sociais e a ascensão do autoritarismo no Brasil, na Índia e nas Filipinas – Arquivo pessoal

A antropóloga foi laureada com um financiamento no valor aproximado de 2 milhões de euros (cerca de R$ 11 milhões) pelo European Research Council (da União Europeia), uma das bolsas mais prestigiosas do mundo, anunciado nesta quinta-feira (17). O trabalho deve começar em maio e tem previsão de duração de cinco anos.

Com trabalho de anos na periferia de Porto Alegre, buscando entender a identificação de trabalhadores do chamado precariado, que viveram o incentivo ao consumo dos anos de governos petistas, com as ideias do presidente Jair Bolsonaro (PL), Rosana conversou com a Folha sobre as questões do novo mundo do trabalho.

A pesquisa busca entender as contradições de países com economias emergentes, com classes sociais que apresentam tendência a apoiar autoritários. Como se chegou a essa hipótese? Quando a gente olha para a teoria de populismo, a gente tem uma deficiência que é tentar entender pelo ponto de vista do trabalhador precarizado, [fenômenos como] Donald Trump e o Brexit. Só que a relação do mundo do trabalho em países que tiveram crises depois de 2017 e países em crescimento é diferente.

É muito diferente ter aquele trabalhador estereótipo do voto do Trump, o cara que perdeu emprego na indústria, perdeu o estado de bem-estar social, e populações como na Índia, onde 80% da população rural sempre esteve na informalidade, ou mesmo no Brasil. O sentimento político é bastante diferente.

O que tem em comum entre esses três países é que todos foram considerados grandes futuras potências democráticas, todos fizeram, em cascata, uma virada autoritária, com algumas coisas em comum, próprias das contradições desses modelos.

Você tem milhões de pessoas saindo da linha da pobreza, que passaram a viver a plataformização do trabalho —não só do Uber, mas Facebook, WhatsApp, Instagram, Telegram. Pessoas que, no sentido mais amplo possível, usam alguma plataforma digital para empreender.

Que evidências existem nessa direção no Brasil, por exemplo? Quando Bolsonaro fala o oposto do “fique em casa”, que era comércio aberto, o que toda a esquerda pensa? Que ele é um genocida, e fica sem entender como uma parte da população segue gostando dele. Mas é uma parte da população que está totalmente alinhada a um projeto hiperindividualista: esse trabalhador se faz por si próprio, ele não precisa de política de Estado, ele odeia o que chama de “coitadismo”.

Muitos desses populistas têm uma mensagem direta focada na produção do inimigo interno, que é o mau trabalhador, o vagabundo, e valorizando a figura do trabalhador que vence por si próprio, que não precisa do Estado. Todo pensamento progressista vai em outra direção, pensando no Estado como provedor do bem-estar social e de direitos. Bolsonaro fala para muitos desses trabalhadores quando promove comércio aberto, uma autogestão da pandemia, que é o oposto de uma gestão coletiva.

Qual o impacto político dessa plataformização do trabalho? Essa é a maior pergunta do projeto. Toda a literatura de plataformização e política está mais alinhada em entender o fenômeno de resistência, as possibilidades de sindicalização, só que é uma possibilidade muito pequena da política das plataformas.

Grande parte desses trabalhadores não necessariamente são bolsonaristas, mas estão muito vinculados a um grau individualista e conservador, mais alinhado ao campo da direita e à despolitização do que à resistência. Nós estamos argumentando que, tão importante quanto olhar para a mobilização, é entender o que nas próprias plataformas está desmobilizando.

A nossa hipótese inicial é que, conforme vai se plataformizando, uma grande parte vai caindo na malha da extrema direita.

Ainda não se sabe o impacto político disso nessas pessoas que estão empreendendo do seu celular 20 horas por dia. A gente tem que lembrar que elas estão entrando em lugares que não são só econômicos, mas permeados de valores políticos. Não se tem noção do que isso vai resultar daqui alguns anos em termos de subjetividade política.

A pessoa está horas trabalhando e recebendo todo tipo de informação em um lugar onde a extrema direita tem hegemonia total, a esquerda não passa nem perto. É muito além do gabinete do ódio, eles têm um ecossistema político. Esse trabalhador está muito mais exposto a essas redes que são super empreendedoras, “faça você mesmo”, “contra vagabundo”.

Influencers, gamers, pastores pops, caras que ajudam a investir e são seguidos por milhões de pessoas, é tudo muito alinhado ao bolsonarismo. Tem um aspecto também de entender a renovação do bolsonarismo para além do Bolsonaro, como esses grupos conservadores e hiper liberais continuam recrutando membros das classes populares.

Tem todo um universo de pessoas muito mais sofisticado do que aquela fake news tosca que a gente combatia. Um ambiente muito mais persuasivo, sutil e poderoso, que é o sonho de uma ilusão de um estilo de vida.

Fonte: Fernanda Canofre – Folha UOL

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