Violência: “a senzala está ganhando”, diz Cony

Para o nosso renomado escritor Carlos Heitor Cony, em seu programa de rádio em conjunto com Arthur Xexéo, o aumento da violência na cidade do Rio de Janeiro pode ser explicado através da relação entre a Casa Grande e a Senzala, estudada por Gilberto Freyre. Segundo o autor de O ventre, o que está acontecendo hoje é que a senzala percebeu que a Casa Grande está “em decadência”, “desorganizada e sem orientação” devido às denúncias de corrupção, roubalheiras, investigações… Desta maneira, ela ocupou as ruas, atacando e promovendo o cenário de violência vigente. Cony nos dá a entender (sem nenhuma perspectiva crítica do fato) que a polícia é paga para proteger a Casa Grande da Senzala, já que suas palavras foram: a “Casa Grande está sem polícia porque não paga”. Portanto, o autor de Pilatos nos faz crer que a onda de violência – reduzindo esta a uma luta entre polícia e bandido – que apavora o carioca, é proveniente do desarranjo da Casa Grande, que perdeu o controle de si e da Senzala, deixando escapar de suas mãos a ordem (lê-se paz).

O escritor não parece ser contrário a essa divisão tradicional que tanto sangue verteu, sobretudo, da carne afrodescendente. Uma divisão que a tornou mais barata no mercado; uma divisão que é por si só violenta. Pelo contrário, nos faz pensar que a ordem só pode ser assegurada quando a Casa Grande está organizada e a Senzala em seu devido lugar. “A Casa Grande está em briga consigo mesma”, diz de forma enfática.

Cony identifica os integrantes da Senzala como sendo o porteiro, o policial, o enfermeiro, o pobre, o sujeito do morro etc., e o “morro funciona”, por sua vez, “mais ou menos como a senzala de até pouco tempo”. E ainda frisa, de forma salutar, citando uma canção de Vinícius de Moraes, uma ideia que atormentou muitos políticos de outrora, a de que quando o morro descesse, a cidade iria sofrer. Diz, também, que, em um passado recente, a onda de violência era menor. Quando a seleção brasileira, por exemplo, perdeu a copa de 1950, muitos cariocas foram cumprimentar a seleção uruguaia. Hoje isso seria impossível, porque estamos vivenciando uma “cólera da Senzala”.

Claro que “há a falta de dinheiro, o Estado não paga e quem sofre mais é a Senzala”, diz o nosso imortal da Academia Brasileira de Letras. E “a tendência é roubar porque a impressão que eles [os indivíduos da senzala] têm é que podem aproveitar a confusão da Casa Grande para tirar algum lucro. Sempre que há uma briga alguém ganha e no caso atual parece que a Senzala está ganhando”.

Será, realmente, que a violência é gerada pelo fato de existir uma elite descontrolada? A cidade não pode pertencer à Senzala? Será que com todo o desemprego, com todas as reformas que agradam aos patrões sendo aprovadas, a senzala realmente está ganhando? O raciocínio conservador de Cony lembra o dos cafeicultores do século XIX, no qual a paz existe quando a opressão sobre o cidadão preterido está regulada, quando o escravo está levando suas chibatadas, comendo os restos de comida sob a vigilância do capataz. Para que a paz seja assegurada – de acordo com o nosso célebre romancista, roteirista, cronista etc., que não demonstra, por sua vez, nenhuma alternativa ao modelo Casa Grande e Senzala – o morro deve permanecer no morro para que o asfalto possa se refestelar com seus carros luxuosos e celulares multifuncionais.

A tendência do pobre desempregado é roubar? Nem todo desempregado rouba, sabemos disso. Será que Cony não sabe que diversos fatores levam ao crime, como aspectos familiares, psicológicos, a falta de acesso aos bens culturais produzidos etc.? Claro que sabe. Mas prefere dizer que a desorganização da cidade é a vitória da senzala, o que nos leva a entender que, para desfrutarmos de uma cidade segura e organizada, a senzala deve ser derrotada, ou melhor, ficar na sua posição tradicional.

Com certeza, essa “é a paz que eu não quero seguir”. Você, porteiro, policial, enfermeiro, pobre, sujeito do morro, cale a sua boca e fique no seu lugar, deixe os outros curtirem a liberdade, gozarem e se masturbarem em meio à luxúria produzida por você, cidadão do morro, que edifica os edifícios espelhados e as escolas de língua estrangeira que não pode entrar. Parece ser essa a mensagem do autor de A casa do poeta trágico.

Essa sempre foi e sempre será a ideia de liberdade apresentada pela burguesia. Uma “liberdade e igualdade” “meramente formais, o que significa, na realidade, escravatura salarial para os trabalhadores (que são, formalmente, livres, gozando, formalmente, de direitos iguais), todo o poder para o capital, e opressão do trabalho pelo capital”. Para Lênin esse é o ABC do socialismo e não podemos esquecer dos seus ensinamentos, extremamente úteis, para rebatermos essas interpretações conservadoras e excludentes.

Raphael Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

Fonte: Caros Amigos

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